sexta-feira, 6 de abril de 2012

A porca baé


Vítor Alexandre, Vitô para os íntimos, é o cara. Ainda adolescente desceu das serras de Porção, no Pernambuco, e ganhou o mundo. Não tinha nem se acostumado ainda com a gilete e já tinha sido recrutado para a colonização do Paraná, onde experimentou o “papo amarelo”, nas refregas da grilagem de terras das companhias colonizadoras daquele Estado. Cangaço, caro amigo ou cara amiga que talvez me leia, não existiu só no Nordeste, não!

Acabou retornando “às Porção”, como se fala, com algum trocado no bolso e mais cabelo na cara. Desceu, tempos depois, dos picoitos da serra natal, esbarrou na Lagoa do Monteiro, onde furou o pneu e ficou. Hoje, aposentado, é caseiro numa chácara nas cercanias da cidade. Vive vidinha sossegada, com direito a umas bicadas com os amigos nos fins de semana, para desagrado da mulher, Luzinete, para quem sobra fazer o tira-gosto.

Seu maior orgulho hoje é só falar a verdade. Nunca mentiu, exceto para alguns delegados, na mocidade, para não ter que dormir fora de casa... Mas, releva esses escorregões da juventude, pois o Monsenhor disse certa vez, num sermão, que uma mentirinha aqui, outra ali, que não prejudicasse ninguém, era pecado pequeno, perdoado fácil por Nosso Senhor.

Num recente encontro que tivemos, o papo ficou animado depois de dois tragos, quando, fazendo apologia de sua reconhecida seriedade, contou-me a história da porca baé. Eis:
“Mulher não tem jeito, compra tudo que vê. A minha, outro dia, não teve o que fazer, me deixou sem pinga, mas trouxe pra casa o diabo duma bacurinha baé. Só porque achou-a bonita. Arre! A bicha, além de baé, era daquelas que têm o focinho curvo! Foi um fuzuê só daí pra diante.

A danasca gritava que nem quem apanha da polícia! Também, vivia com fome pois não acertava comer com o tal focinho, virava o cocho a toda hora, lambuzava-se toda, um melelê da peste! E não largava o pé da gente pedindo comida. Quem dava jeito? Foi então que aprendeu a beber ovo.

Principiei a reparar que não havia mais ovos nos ninhos, mesmo que as galinhas continuassem com a zuadêra depois de os por. Galinha cantava, eu corria lá. Pra quê? Eu só via a baé balançando a cabeça, pingando ovo pelos beiços, casca caindo pros lados, eu corria pra riba dela, ela danava-se no meio do mato, adeus! Bichinha pra correr!

Noutro sábado, a mulher chegou com um pacote de ovo de pata, para deitar numa galinha choca, dizendo que ouviu alguém dizer que ovos de pata são mais duros, a baé podia até comê-los, mais comeria menos. Deitou os ovos no ninho e esperou. Mas! Numa saidinha de nada que a galinha deu para dar serviço às tripas, a porca – a bicha já tinha crescido, tava uma marrã – foi no ninho, abocanhou um ovo, o bicho escorregou dos dentes dela, pulou um meio metro à frente, a porca o atacou de novo, outro pulo, a danada cismou como quem diz: que é isso, homem, deixe de besteira!...

Continuou dando bote, o ovo saltando para um lado, a danada foi seguindo seu itinerário, quando dei fé lá ia aquele eito estrada afora, já no terreiro do vizinho. No começo nem liguei. Era comum ela sair do terreno da gente para roubar nos vizinhos. Perto da boca da noite a mulher deu pela falta da porca, me azucrinou tanto que fui procurar a desgramada. Um tempão se passou até que um chofer me deu conta dela:
- “É uma baé mais ou menos aqui assim?” (fez um gesto com a mão indicando mais ou menos a altura da porca).
- Inhô sim, voismicê viu aquela trepeça onde?
- Perto de Pernambuquinho. Me chamou a atenção que ela quisesse beber um ovo e o bicho parecendo estar vivo, pulando na frente, ela dando bote, ele escorregando. Seguiram adiante. Naquela pisada, já estão bem em Sertânia!
- Credo da Missa! Será o satanás? Voltei por onde vim. Era de noite, eu ia lá atrás de porca e ovo? Eu estava era achando bom, só assim ia me ver livre daquela desgraça e ter meu pirão de volta!
A mulher é que demorou a se conformar. – “Porquinha tão bonitinha... Ia dar uma ninhada...” Era só o que me faltava!
O tempo se passou até que um dia desses, eu tava no mercado molhando o pescoço e tirando prosa com alguns amigos,quando um caboclo puxou o assunto:
- Vitô, achasse a porca?
- Não, danou-se por aí tentando pescar um ovo e o bicho escapulindo, conforme fiquei sabendo. A última notícia que tive foi que os viram perto de Pernambuquinho. Já deve ter virado um sarapatel!

Continuaram com aquela prosa até que foram interrompidos por um cidadão que comia uma sopa, calado, lá num canto:
- Desculpe me intrometer. Não será ela uma porca baé, de focinho torto, mais ou menos aqui assim? (marcou com o braço a altura presumível do animal).
- Confere, eu disse. O senhor a viu?
- Olhe moço, eu cheguei a pensar que tava ficando doido. O senhor sabe como é esse negócio de dirigir sozinho muitas horas. Pois eu vi, sim, aquele estrupício. A baé dava uma abocanhada, o ovo pulava. Calculei que já fazia tempo aquela coisa, porque já tinha até uma perna do pinto de fora. O bichinho deve ter nascido naquela noite! Tem um porém: com a fome que ela tava – era só couro e osso – acho que papou o pintinho mal ele botou a outra perna fora!
- E onde foi isto? - inquiriu Vitô.
- Perto de Feira de Santana, no começo da Rio-Bahia.
Dito isto, Vitô tomou uma bicada e pediu confirmação:
- Não foi Luzinete?
Luzinete apareceu na porta da cozinha com um pedaço de linguiça numa mão e uma faca na outra, olhou para mim com uns olhos... A boca franzida, balançando negativamente a cabeça, como quem diz:
- Compadre não tem o que fazer, não é? Vem de tão longe pra ouvir essas verdades de Víto?...
Vitô retruca:
- Ôxe Luzinete, tantos anos de casada e agora está querendo dizer que eu não falo a verdade?

Intermares, 05.04.2012.

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