domingo, 13 de maio de 2012

Seriema e Soldado


Esta foi garimpada em Monteiro, na Paraíba. 

Assim como em Patos reinou absoluto seu Manduri; assim como seu Lunga reina ainda no imaginário do sertanejo, tendo encarnado como ninguém o estado de espírito raivoso do homem do sertão nordestino, a ponto de ninguém saber ao certo sua naturalidade, em Monteiro reinou absoluto Caboclo Ferreira. De compleição franzina, alto, tostado de sol, irreverente mas sisudo, homem da lida, envelheceu fazendo história, por conta do mal humor e das respostas ferinas. Como estas, ditas a públicos diferentes, mas num mesmo dia, dia daqueles em que ele já amanhecia abufelado(1). 

Vinha Caboclo para a feira de Monteiro, na carroceria de uma camionete cheia de gente, bichos e mercadorias. Ele, que já amanhecera com o pé esquerdo no lugar do direito, achava-se bastante contrariado com o aperto a que estava submetido."Uma falta de respeito com os velhos" - pensava. Para completar, havia um sujeitinho  metido a engraçado,  descarregado nas redondezas pela Itapemirim(2), direto do Rio de Janeiro, no decorrer da semana. O cara começou a soltar umas lorotas, riram delas, ele pegou gosto e começou a tirar graça  com os companheiros de viagem.  Caboclo Ferreira inchava lá no seu canto. "Este bostinha que não venha pro meu lado!" - matutava(3). 

Para apurar o da feira, Caboclo trazia um couro de cabrito espichado(4). Venderia-o, não depois de uma boa briga, por preço irrisório, àquele safado do comprador de couros de Campina Grande. Cabra ladrão! Comprava tudo de graça, apurava uma bolada nos curtumes de Campina e enricava, o desgraçado, à custa dos pobres dos criadores. 

Metade da viagem já passada, o engraçado acha Caboclo. Olha-o, corre a vista para  a vareta que este trazia com o couro do cabrito e solta: - "Tio, quantos paus se precisa para espichar um couro?". Caboclo dispara: - "Depende, se for de c... basta um!". Silêncio geral até o fim da viagem. 

Parece, contudo, que o Vadio tava de olho em Caboclo Ferreira naquele dia, não o deixaria em paz. Caboclo apurou o couro depois de muita briga, saiu cuspindo fogo, disparou chispa na mercearia, igualmente desentendeu-se com o marchante de gado no açogue, acabou comprando um cozinhado de porco noutra tarimba(5). Saiu com a carne pendurada numa embira(6) pela rua de trás, onde havia menos gente, para não se azucrinar(7) mais com ninguém. Só não contava com a seriema do soldado. 

Seriema hoje é bicho raro. Animal carnívoro, de canto longo e belíssimo. Difícil de domesticar, mas há quem tente, como o soldado desta história, que sentou praça na cadeia de Monteiro.  Dizimaram seu habitat, escassearam os bichos dos quais se alimentava, sumiu seu canto dos nossos ouvidos.  Uns poucos são encontrados em cativeiro.

O soldado tinha fama de bravo, mas derretia-se todo com seu casal de seriemas. Parecia menino com gaiola de passarinho na mão, passeando com as aves, rua acima, rua abaixo. Achando que elas não fugiriam mais pro mato, passou a deixá-las soltas pelas ruas próximas à delegacia. Elas iriam defender-se sozinhas, caçando pequenos animais. 

Para desespero de Caboclo e desgraça de uma delas, mal viu o pedaço de carne que ele trazia, a bichinha principiou a beliscá-lo, tentando roubar um naco. Como disse,  seriema é animal carnívoro, carne na rua é artigo caro e parece que andava pouca na casa do soldado, tamanha era a insistência do animal no pedaço de Caboclo. Era a seriema tentando beliscar a carne, ele afastando-a com uma bengalinha de ferro que já usava naquele tempo, para amparar-se nas subidas e descidas. A paciência dele ia sumindo com aquilo, até que foi pro brejo. Em nova investida do animal,  tascou-lhe o ferro na cabeça, ela caiu ciscando. 

Como mulher metida tem em todo canto, uma que passava na hora gritou: 
- "Seu Zé, cuidado que essa seriema é do soldado!". Caboclo devolve:
- "Seu Zé é a mãe, dona! E pense em duas coisas que eu não tenho medo, é sariema(8) e soldado!"

Glossário:
1. Abufelado: zangado, irritado.
2. Itapemirim: empresa de ônibus que faz ligação do Nordeste com o Sudeste do País.
3. Matutava: pensava, meditava.
4. Espichado: esticado através de varetas de arbustos da região.
5. Tarimba: forma antiga de designar um box de comerciante de carne no açougue.
6. Embira: pequeno pedaço de corda, normalmente de uma fibra regional muito resistente conhecida como caroá.
7. Azucrinar: zangar, tirar a paciência de alguém ou de algum animal. 
8. Sariema: forma comum do nordestino inculto designar seriema. 


Texto e glossário: Ary Diniz, Intermares - Cabedelo/PB
Foto: Internet (Google)

Otimismo em gotas. A sequência


Estando outro dia em Taperoá, fui ao bar de Luizinho com meu irmão Marcos, que estava de férias visitando nossa mãe. Estávamos em papo animado, quando chega à mesa um caboclo com um saco na mão, onde, percebia-se, havia uma faca peixeira grande, com certeza instrumento de trabalho, pois o cara me pareceu da raça dos frouxos como eu. Sem pedir licença, puxou uma cadeira e abancou-se, principiando uma conversa comprida e chata, nem aí para o fato de estar nos atrapalhando. No princípio adotamos a estratégia de não lhe dar atenção, na esperança de ele perceber nossa pouca disposição para ouvi-lo e pousar em outro galho. Mas o cara era insistente, tipo cururu, que a gente tenta expulsar de casa com o cabo da vassoura e ela insiste em voltar. Enxerido, pediu um copo a Luizinho, meteu a mão em nossa cerveja e passou a dividi-la conosco, menos na conta. Marcos e eu trocamos um olhar de entendimento, chamamos o dono do bar e pedimos para ele expulsar o intruso. Cabra jeitoso, Luizinho tirou de letra a tarefa. Aproveitei que ele trouxe nova cerveja, agradeci-lhe o favor e perguntei-lhe, só para ver a reação: 

- Primo, não quer levar o sujeito pro teu sítio? O cara tava aqui nos pedindo emprego. Deve ser bom trabalhador, pois se fosse preguiçoso a essas horas estava era espichado(1) numa rede...   
- O primo tá doido? Um desses aí é a desgraça de qualquer patrão? Não vê Luiz Gonzaga: "trabaiadô quando é bom, segunda-feira num faia"! Que dia é  hoje? Onde ele está? Tá fazendo o quê? 

Luiz trazia à baila frase de uma antiga música do cancioneiro gonzagueano, o Calangro da Lacraia, não sei de quem a letra. Como se vê, essa frase da música ainda é sentença definitiva na boca dos nordestinos mais maduros. Continua Luizinho:
- Cabra de muita conversa, desconfie dele. Num tá vendo, Primo, sujeito desses, saiu de mesa em mesa, bebendo de graça, conversando miolo de pote(2) de caso pensado, pros fregueses se aborrecerem e expulsá-lo da mesa e ele não ter que descolar grana nenhuma. Ora, o cara sai, mas já bebeu um copo ou dois, que era o que queria e mais nada. E assim passa o dia, de bar em bar, de mesa em mesa, no final da tarde tá aí caído pelas calçadas. Conheço bem esses praças(3), tenho muito janeiro de balcão, aqui e no Rio. Sei de tudo, nesse meu pedaço eu sei de tudo, ninguém me passa a perna. Já caí nos papos furados a que tinha direito. Virei macaco velho (4).

É muito divertido tomar cerveja no bar do Primo. Marcos continuou provocando:
- Nada, Primo, hoje em dia tá difícil homem trabalhador, você tem que pegar o que aparecer e esse tá aí dando sopa.
Luiz ri, balança a cabeça e responde:
- Tô fora, fui vacinado contra essas pragas! Mas em seguida esquece o bar e chega ao ponto que eu desejava, ao seu pessimismo antológico. 
- Amigo, nesse cariri velho da gente, ter terra hoje não vale nada e você ainda botar lá dentro essas trepeças(5)? É pra morrer dos bofes. Tome nota: hoje tem dinheiro do governo pra todo mundo, o sujeito engrossa o bigode, vem pra rua tomar cachaça e fumar maconha, tem quem pague, né, vai trabalhar pra quê? A rua(5), entupida de gente de toda espécie. Se a gente bota um comércio, aparece meio mundo de freguês pra comprar fiado e dar calote. Se bota uma roça, vem a formiga que rói a lavoura; se escapa da formiga, na espiga vem o papagaio, faz um estrago da peste; se escapa das maracanãs e chega na fogueira (6), tem que dar um saco pra tudo que é compadre. Sobra o quê? Um nadinha. Se vai vender, o atravessador bota o preço lá em baixo; se põe no silo, aí vem o gorgulho, fura tudo, quando você destampa o depósito só cai farelo, não serve nem pra semente. Não vale a pena. Feijão? É a mesma desgraça: se escapa da formiga, na bage (7) é um cozinhado pro morador, outro pro vizinho, chega no domingo a mulher põe no fogo um bocado, e esse é o que você aproveita. Na arranca(8), vem o frio do meio do ano que não deixa secar; o que escapa dá de cara com a praga do preço, apura-se um nadinha. Se põe no silo, tem que fechar muito bem fechado. Hoje em dia as abelhas sumiram, então em vez da cera, o sujeito usa sabão pra fechar a boca do depósito, o sabão seca, dura pouco, entra o ar, o gorgulho toma de conta. Se bota o veneno, previne o besouro, mas dizem que morre de câncer. Plantar pra quê, meu amigo? 

Tento levar o assunto para outra vertente, só para ver a opinião do distinto.
- É por isso que dizem que no nordeste o certo mesmo é a criação. E nem de gado que exige muito comer, capim, silo trincheira, essas coisas. E Água.
- É outro tropeço, primo. Se você cria o gado, tem que ter água, senão nem comece. Ainda assim, você engorda uma rês, tem que dá ração por um preço de lascar, quando vai apurar o marchante dita quanto quer pagar e se não tiver pelo menos trinta dias de prazo não tem negócio.Teu boi boia(8), você tem que tanger de volta pro curral. Vaca de leite? De 10 litro pra baixo nem tente. Uma vaca de dez litros come igual a uma de vinte, mas a de vinte, vá comprar! Tem que botar milhão pra ter! Ou você morre no banco arriscando não pagar nem os os juros, que estão nas nuvens, aí tem que vender a terra pra pagar ao banco. Negócio ruim, sô! Vai criar bode? Tem que ter cerca, senão acaba em desavença com os vizinhos, porque, ô bicho ladrão é o tal do bode! Tem uns tão velhacos que parece gente ruim: fica o mais taludinho encostado nos arames da cerca, os outros formam fila, correm pro bicho, põe os pés nele e pula os arames. Caem do outro lado dando um bodejo como se fosse mangando(9) da gente, os desgraçados! Pra encurtar a conversa, tem um pedacinho de terra? Faça como eu: pegue se jipe bote dois contos de gasolina, vá lá passe o domingo, tome sua cerveja e volte pra dormir em casa. E deixe a capoeira tomar conta de tudo. E ainda faça fita, hoje não tem o Ibama e os tais de ecologistas dando o maior a valor a mata virgem? Preservar é a coqueluche do momento. E você foge do prejuízo. 

Olho pro meu irmão, ele entende que tá na hora de pagar a conta e ir pra casa. O cara estraga nossos planos de ter uma terrinha, criar umas cabras para quando viermos de férias termos uma diversão diferente. Somos da época do nordeste algodoeiro e pecuário, as cidades eram cheias de casas de agricultores que vinham à cidade no dia da feira e nas festas da padroeira ou no Natal. Tomávamos leite in natura, comíamos queijo de coalho envelhecido nos jiraus das casas das fazendas, comíamos feijão verde e maxixe feito no leite, arroz mexido na graxa do quarto traseiro de bode novo morto no terreiro do sítio, sem selo da Anvisa e que tais. Definitivamente esse Brasil desapareceu. 

Resta-nos então irmos para casa, rirmos do pessimismo de Luizinho tendo-o como se fosse o "otimismo em gotas" da obra do autor famoso. Até a próxima visita ao seu estabelecimento, para prospectarmos mais do que não tem mais jeito neste que um dia foi nosso mundo.   

Texto e foto: Ary Diniz - Intermares - Cabedelo/PB.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A porca baé


Vítor Alexandre, Vitô para os íntimos, é o cara. Ainda adolescente desceu das serras de Porção, no Pernambuco, e ganhou o mundo. Não tinha nem se acostumado ainda com a gilete e já tinha sido recrutado para a colonização do Paraná, onde experimentou o “papo amarelo”, nas refregas da grilagem de terras das companhias colonizadoras daquele Estado. Cangaço, caro amigo ou cara amiga que talvez me leia, não existiu só no Nordeste, não!

Acabou retornando “às Porção”, como se fala, com algum trocado no bolso e mais cabelo na cara. Desceu, tempos depois, dos picoitos da serra natal, esbarrou na Lagoa do Monteiro, onde furou o pneu e ficou. Hoje, aposentado, é caseiro numa chácara nas cercanias da cidade. Vive vidinha sossegada, com direito a umas bicadas com os amigos nos fins de semana, para desagrado da mulher, Luzinete, para quem sobra fazer o tira-gosto.

Seu maior orgulho hoje é só falar a verdade. Nunca mentiu, exceto para alguns delegados, na mocidade, para não ter que dormir fora de casa... Mas, releva esses escorregões da juventude, pois o Monsenhor disse certa vez, num sermão, que uma mentirinha aqui, outra ali, que não prejudicasse ninguém, era pecado pequeno, perdoado fácil por Nosso Senhor.

Num recente encontro que tivemos, o papo ficou animado depois de dois tragos, quando, fazendo apologia de sua reconhecida seriedade, contou-me a história da porca baé. Eis:
“Mulher não tem jeito, compra tudo que vê. A minha, outro dia, não teve o que fazer, me deixou sem pinga, mas trouxe pra casa o diabo duma bacurinha baé. Só porque achou-a bonita. Arre! A bicha, além de baé, era daquelas que têm o focinho curvo! Foi um fuzuê só daí pra diante.

A danasca gritava que nem quem apanha da polícia! Também, vivia com fome pois não acertava comer com o tal focinho, virava o cocho a toda hora, lambuzava-se toda, um melelê da peste! E não largava o pé da gente pedindo comida. Quem dava jeito? Foi então que aprendeu a beber ovo.

Principiei a reparar que não havia mais ovos nos ninhos, mesmo que as galinhas continuassem com a zuadêra depois de os por. Galinha cantava, eu corria lá. Pra quê? Eu só via a baé balançando a cabeça, pingando ovo pelos beiços, casca caindo pros lados, eu corria pra riba dela, ela danava-se no meio do mato, adeus! Bichinha pra correr!

Noutro sábado, a mulher chegou com um pacote de ovo de pata, para deitar numa galinha choca, dizendo que ouviu alguém dizer que ovos de pata são mais duros, a baé podia até comê-los, mais comeria menos. Deitou os ovos no ninho e esperou. Mas! Numa saidinha de nada que a galinha deu para dar serviço às tripas, a porca – a bicha já tinha crescido, tava uma marrã – foi no ninho, abocanhou um ovo, o bicho escorregou dos dentes dela, pulou um meio metro à frente, a porca o atacou de novo, outro pulo, a danada cismou como quem diz: que é isso, homem, deixe de besteira!...

Continuou dando bote, o ovo saltando para um lado, a danada foi seguindo seu itinerário, quando dei fé lá ia aquele eito estrada afora, já no terreiro do vizinho. No começo nem liguei. Era comum ela sair do terreno da gente para roubar nos vizinhos. Perto da boca da noite a mulher deu pela falta da porca, me azucrinou tanto que fui procurar a desgramada. Um tempão se passou até que um chofer me deu conta dela:
- “É uma baé mais ou menos aqui assim?” (fez um gesto com a mão indicando mais ou menos a altura da porca).
- Inhô sim, voismicê viu aquela trepeça onde?
- Perto de Pernambuquinho. Me chamou a atenção que ela quisesse beber um ovo e o bicho parecendo estar vivo, pulando na frente, ela dando bote, ele escorregando. Seguiram adiante. Naquela pisada, já estão bem em Sertânia!
- Credo da Missa! Será o satanás? Voltei por onde vim. Era de noite, eu ia lá atrás de porca e ovo? Eu estava era achando bom, só assim ia me ver livre daquela desgraça e ter meu pirão de volta!
A mulher é que demorou a se conformar. – “Porquinha tão bonitinha... Ia dar uma ninhada...” Era só o que me faltava!
O tempo se passou até que um dia desses, eu tava no mercado molhando o pescoço e tirando prosa com alguns amigos,quando um caboclo puxou o assunto:
- Vitô, achasse a porca?
- Não, danou-se por aí tentando pescar um ovo e o bicho escapulindo, conforme fiquei sabendo. A última notícia que tive foi que os viram perto de Pernambuquinho. Já deve ter virado um sarapatel!

Continuaram com aquela prosa até que foram interrompidos por um cidadão que comia uma sopa, calado, lá num canto:
- Desculpe me intrometer. Não será ela uma porca baé, de focinho torto, mais ou menos aqui assim? (marcou com o braço a altura presumível do animal).
- Confere, eu disse. O senhor a viu?
- Olhe moço, eu cheguei a pensar que tava ficando doido. O senhor sabe como é esse negócio de dirigir sozinho muitas horas. Pois eu vi, sim, aquele estrupício. A baé dava uma abocanhada, o ovo pulava. Calculei que já fazia tempo aquela coisa, porque já tinha até uma perna do pinto de fora. O bichinho deve ter nascido naquela noite! Tem um porém: com a fome que ela tava – era só couro e osso – acho que papou o pintinho mal ele botou a outra perna fora!
- E onde foi isto? - inquiriu Vitô.
- Perto de Feira de Santana, no começo da Rio-Bahia.
Dito isto, Vitô tomou uma bicada e pediu confirmação:
- Não foi Luzinete?
Luzinete apareceu na porta da cozinha com um pedaço de linguiça numa mão e uma faca na outra, olhou para mim com uns olhos... A boca franzida, balançando negativamente a cabeça, como quem diz:
- Compadre não tem o que fazer, não é? Vem de tão longe pra ouvir essas verdades de Víto?...
Vitô retruca:
- Ôxe Luzinete, tantos anos de casada e agora está querendo dizer que eu não falo a verdade?

Intermares, 05.04.2012.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Geni vive!

Deu no Jornal:  “Um paciente meu sofreu um atentado criminoso por profissionais do sexo (vulgarmente chamadas prostitutas)... ao dar uma carona a pedido delas...” Até aí tudo bem. É sabida a frequência com que, infelizmente, ocorrem golpes de todo tipo nesse meio, sendo o mais comum aquele conhecido como “boa noite cinderela”. O relato da pessoa até sinaliza para uma variante desse, pois diz que o ameaçaram com faca e usaram formol para deixarem-no desacordado. A sequência, entretanto, merece análise mais acurada. Vejamos.

O texto não diz se o fato ocorreu de dia ou de noite, embora depreenda-se ter sido fato noturno. Primeiro, porque, de dia, o local onde o “paciente” da declarante deu a carona não é ponto de prostitutas. Não sei se à noite é. Também o local onde “foi jogado”, a praia do Jacaré, se à noite é esquisito, principalmente neste período de baixa estação, de dia é local de bastante movimento de comércio, difícil, então, de acreditarmos que as agressoras tivessem coragem de largá-lo lá, pra todo mundo ver.

Segue a análise: o que o desditoso cidadão estaria fazendo à noite, na Visconde de Pelotas, com espírito tão samaritano, a ponto de dar carona a três “mundanas” ? O local citado, findo o expediente comercial, quem tem juízo passa ali apenas por necessidade e o mais rápido que o tráfego permitir. Poderia aquele “paciente” estar à procura de aventura? Por que não? Poder-se-ia dizer, para justificação aos amigos e familiares e conforto ao coração do dito cujo, que não fora o primeiro nem será o último a arriscar a pele nesse tipo de empreitada. E que imprevistos acontecem.

Na sequência da leitura, fica claro que a missivista deseja fazer um apelo muito importante às autoridades, em prol da segurança dos cidadãos que eventualmente possam transitar pelo Centro Histórico da Capital, à noite, fazendo o bem. Para isso narra o fato, inegavelmente perigoso para seu “paciente”, mas argumenta, para reforço do pedido que fará, que “os rapazes que precisam de sexo se arriscam da mesma forma, ou mudam de sexo” (grifo nosso).

Já vi, li e ouvi muitas indagações, inquietações e explicações, atestadas ou não pela ciência, acerca da motivação das pessoas para a mudança de sexo. Pois não é que diretamente da nossa pequenina e tão boa Paraíba, vem somar-se a estas, agora, a segurança pública? Melhor dito: a insegurança pública, dos cidadãos e cidadãs desta nossa contemporaneidade tão surpreendente!

Concluída a prévia argumentação, eis a petição: “as autoridades precisam tomar a iniciativa de voltar os cabarés”. Mas não de qualquer jeito, tem que ser “de uma forma legal e segura, como existia antigamente”!. Vale repetir a preocupação da missivista: precisamos urgentemente da volta dos cabarés, mas é preciso ser de forma legal e segura, não adianta fazer a torto e a direito, como vocês fazem tudo neste país, autoridades! Alerta! A Globo diria mais: “estamos de olho!”.

Nossa diligente profissional da saúde (sim, pois se não me falha a memória, apenas nesse meio tratam-se os clientes como “pacientes”, embora, modernamente, já haja quem prefira o termo mais geral do mundo mercantil) está realmente muito empenhada em convencer pessoas do Poder Público a reabrir os cabarés.

Apresentou razões antes do pedido, mas, por via das dúvidas, reforça-as a posteriori, lançando mão de nova linha argumentativa, desta vez lembrando o caráter eminentemente social da “mais antiga profissão”.
Segundo ela  afirma, as autoridades não devem esquecer jamais de que “é a profissional do sexo que define e firma a sexualidade masculina”(grifo nosso). Genial! Geni vive! Chico vive!: “Vai com ele, vai, Geni,.. você pode nos salvar, você vai nos redimir, você dá pra qualquer um, bendita Geni”!...

Entrei em crise existencial. Como pude me esquecer disso?! A quem posso culpar por tão grande lapso de memória? Alguns me dirão, para me consolarem, que foi esse mundo vertiginoso, que nos enfia no tubo do tornado, no olho do furacão, na crista da onda do tsunami, todo dia, a toda hora, a todo instante, sem que possamos controlar nossa existência. Outros me olharão de soslaio, mal escondendo intenções levemente maldosas e dirão, como quem joga a bomba e sai de perto: tás casado a quantos anos com tua mulher? Trinta anos? Mais um pouco, menos um pouco?... 

Devo procurar ajuda, antes que esta crise evolua para dermatites, esofagites, gastrites, depressões, esquizofrenias e/ou outros males. Antes, porém, e para finalizar, trago a lume o último detalhe da diligentíssima missiva: ela escreve às incautas autoridades, à guisa de recomendação para que acordem para tão sério problema, que “as calçadinhas estão impestadas (grifo nosso) desse tipo de profissionais, que ora atacam pessoas que as procuram”  – ih!, não era uma carona? ... – “ pois ficou muito fácil das pessoas criminosas se infiltrarem se passando por tal profissão”.
Geni vive, Chico vive: “... ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni!”.
Intermares, 16.05.2011.
Ari Diniz

sábado, 17 de março de 2012

O PRIMEIRO CAJU

Senti-me o próprio Agnelo Amâncio ressuscitado: achei o primeiro caju desta safra, no sítio de minha sogra.
Agnelo era quem colhia o primeiro caju em Taperoá, safra após safra. Ninguém ainda lembrara de caju e castanha, aparecia o nosso amigo com uma mochila cheia dessa fruta, que casa tão bem com cachaça.

Ele já chegava à cidade entortando as pernas, as mãos, os dedos e a fala, prova de já ter ingerido pelo menos meia garrafa. Tal qual caçador prevenido, que no bornal leva chumbo, pólvora, espoleta e um mercadinho da bendita para prevenir mordida de cobra, Agnelo também saía à cata do caju protegido com seu soro antiofídico. Nada como tomar um trago puxando o caju pro tira-gosto diretamente do galho! Levava o resto do dia para atravessar o circuito de mercearias Isaac-Zé Gomes.

Interessante, Agnelo. Não sei se era o primogênito de João Grande, mas sempre me pareceu sê-lo. Os irmãos, Tiquinho e Paulino, tinham aparência bem mais jovem. Estes possuíam vida econômica ativa, se bem me recordo, fabricando telhas na margem do rio Taperoá, entre este e a estrada velha para Campina.

De Agnelo, só dou notícia de viver em razão de duas grandes paixões: caju e peixe. Nisto atravessava o ano. No primeiro semestre, estação das águas em ano bom de inverno, mudava-se para o rio, tarrafa a tiracolo e jereré na mão, vasculhando os poços que a correnteza abria hoje e fechava amanhã, perseguindo corrós, traíras e piabas. Findavam as chuvas, secava o rio, ficavam os poços maiores. Nos de Pipiu era assíduo.

No segundo semestre, o tempo levantava, sumiam as águas, acabava a abundância dos peixes, migrava Agnelo para os cajueiros. Tinha passe livre nos sítios, todos o conheciam, não reclamavam dele nem pela castanha. Falo de tempos em que as pessoas eram mais solidárias, tudo compartilhavam, a mais-valia ainda não nos envolvera tanto.

E assim tocava Agnelo sua vidinha. Como disse, dedicado integralmente àquelas duas paixões, mas, de fato, alimentando a paixão maior: aguardente de cana, cachaça, pinga, benzedeira, rezadeira, relicário, esquenta-frio, esfria-calor, amansa corno, sossego de velho... Corró e caju só completavam a trindade.

FOTO: internet
Itabaiana, setembro de 2010.

A Agonia do Horto

Não me refiro à agonia d’Ele no Horto das Oliveiras, descrita nos Evangelhos. Quero referir-me  à agonia de outro horto, mais próximo de nós: o horto de Taperoá.

Começou e sessenta e sete do século passado, quando o rio transbordou e o muro que os separava veio abaixo. Depois, foram sumindo as árvores, uma a uma, tendo perdido o pequeno canal de tijolo e argamassa por onde corria a água do Açude do Estado que as regava. Coqueiros imensos lá havia. Vi muitas vezes pessoas subirem para colher cocos, que eram abertos ali mesmo, a canivete, e repartida sua água doce. Recordo-me de uma vez em que Seu Gilberto apanhou um jatobá maduro, que caíra da árvore, abriu-o e deliciou-se com sua massa de gosto único. Aquele imenso jatobá também já não existe, a não ser na lembrança de uns poucos, como eu, que o conheceram.

Descobri ali o gosto do sapoti. Junto com meu primo David, colhemos alguns frutos e os enterramos para amadurecerem. Numa semana, desenterramo-los e os comemos. Nada mais doce! O sapotizeiro, claro, também já era... Naquele horto, tive minha primeira aula prática de botânica. Aliás, foi uma constatação: no livro de leitura da escola, falava da nossa primeira riqueza exportável, cobiça de franceses, holandeses e ingleses, o pau-brasil. Lá conheci essa árvore. Dá até vontade de não dizer, para que alguém não descubra que ele ainda existe e vá lá, de machado ou motosserra na mão, e o ponha abaixo. Não é esse nosso instinto ruim? Mas, sim, ele ainda vive! É o que resta daquele bucólico jardim.

Desapareceu a quadra de areia onde a juventude praticava esporte. É muito nítida minha lembrança de Fernando de Ezequiel, os filhos de Seu Ivanildo, Marcelo Dantas, os filhos de Seu Aprígio e outros, jogando vôlei à tarde naquele areião. Não lembro deles, mas talvez nosso prefeito atual e seus irmãos também tenham jogado lá.

Permanece de pé o muro que dá para a rua que desce da Prefeitura em busca da ponte velha. Mas, o que é um muro, se lhe faltam as pessoas nele sentadas, a prosear à sombra das árvores e ao sopro da brisa da tarde?

Nosso horto não desapareceu à toa. A própria dinâmica da cidade encarregou-se disso. Cidades não são estanques, movimentam-se. Uma área nobre hoje poderá estar em declínio em alguns anos. Em Taperoá aconteceu isso. A construção do atual mercado público, mais ou menos na mesma época da cheia do rio a que me referi, deslocou para a zona leste o grosso do movimento comercial. O conjunto de casas populares, erguido pouco tempo depois, levou para a mesma região um grande contingente de famílias. A Rua Grande e a Chã da Bala perderam o burburinho comercial; ficaram essencialmente residenciais, muito quietas. A ponte nova, construída em sequência à rua São José, consolidou a mudança. Retirou de cá o trânsito de mercadorias e, de quebra, o posto fiscal. Por que ficaria ali o posto de Dadá Diniz, a padaria e o armazém de Gilberto? Aos poucos tudo que havia de comércio nas imediações da Prefeitura, deslocou-se pro outro lado. Mudara o próprio centro da cidade.

O que ainda espanta é, nos dias de hoje, quando é “política pública” redescobrir os centros velhos das cidades, ditos “centros históricos”, o nosso continuar esquecido. Toda cidade que se preza tem seu parque, pulmão da urbe. Nós não! O que custaria aos cofres públicos de Taperoá, replantar aquele horto, cujo vazio clama aos céus? Um funcionariozinho só bastaria. De salário mínimo. Dê-se-lhe o encargo de plantar coqueiros, goiabeiras, mangueiras, jatobás (ainda existem?), pinhas, graviolas e cuidar delas. Seria muito caro organizar um pequeno sistema de irrigação por micro-aspersão, hoje tão banais, e alimentá-lo com água do mesmo manancial, o Açude do Estado? Para ali, a água desceria do chafariz por gravidade, como antigamente, não necessitando sequer gastar dinheiro com moto-bomba, energia ou combustível! Ou também já não existe mais água encanada do Açude do Estado naquele chafariz?

Às vezes me pego a imaginar o que sentem pessoas como Seu Gilberto, Seu Menino, Antonio Patativa, Seu Aprígio e outros, vendo lá de cima aquele seu espaço tão desprezado. Suas almas certamente aprovariam uma atitude concreta da nossa Primeira Autoridade, pela sua restauração.

Devolvamos o horto à cidade! Há crianças, adolescentes e jovens que agradeceriam ter ali de volta o areião para seu vôlei. Quanto a mim, digo que, com grata surpresa, descobri há algum tempo um pé de sapoti na chácara de minha sogra, em Itabaiana. Desde então, não se passa uma safra sem que eu colha alguns para meu café-da-manhã. E, acreditem, venho guardando sementes para plantá-las, qualquer dia desses, no mesmo local onde ficava aquele sapotizeiro de onde colhi meu primeiro sapoti. Vocês verão, farei a minha parte!
Intermares, 08 a 10.09.2009

domingo, 15 de janeiro de 2012

Otimismo em Gotas



Luizinho é um dono de bar muito engraçado, em Taperoá. Desses que começa a contar seus "causos" e logo forma um grupo de pessoas a ouvir e rir. Quando a gente dá pela coisa tá no meio de uma festa. Até mesmo em velório. No de minha avó, depois que fechou o bar, boca da noite, foi à casa do meu avô, fez os cumprimentos de praxe à família, demorou-se um pouco e saiu pra calçada em frente. Logo juntaram-se a ele mais dois, depois mais um e começaram um papo. Em pouco tempo tava uma turma. Do lado de cá só víamos quando se juntavam para ouvir algo que Luizinho contava, baixinho em respeito à defunta, mas de repente só ouvíamos a risada deles. Era uma festa.
Em seu bar não é diferente. Troça com todo mundo, solta uma piada com um, diz um ditado pra outro, trata todos de "primo". Primo prá cá, primo pra lá e vai tocando o negócio, apurando a grana do pirão. Passou muitos anos no Rio de Janeiro, trabalhando em lanchonetes, juntou uma grana e veio ser patrão na Paraíba. Como a esposa é de Taperoá, ali chegaram em meados dos anos setenta do século passado. Três filhos pequenos. Alugaram um prédio a Sebastião Simões e iniciaram o negócio. Depois comprou seu próprio imóvel e organizou o bar do seu jeito.
Gosto muito de tomar umas cervejas lá quando apareço na terrinha. É muito divertido. Meus irmãos também adoram-no. Com o tempo percebemos que, por trás de tanta troça há sempre um quê de pessimismo em suas falas, quando se chega para falar-nos de "coisa séria", como ele diz. Um dia, foi tão longo o rosário de negócios que não davam certo, que tive a idéia de gravar tais encontros, sempre que possível, porque não deixa de ser interessante a forma como expõe seus pontos-de-vista e os exemplos que conta embasando-os.
Ontem estive lá. Esqueci o gravador de voz, mas pedi-lhe papel e lápis, para não deixar passar a oportunidade.
Ao trazer-me uma bebida, quis saber como estou vivendo:
- quer dizer, primo, que você não se preocupa mais com banco... Referia-se ao fato de ter-me aposentado do Banco do Brasil há um tempo.
- Não, primo, deixo as preocupações agora com os outros que tão lá, tocando o barco. Tô agora do lado de cá do balcão. Não vou lá nem para receber a aposentadoria, tem caixa eletrônico em tudo que é canto...
- O primo tá certo. O que vale é tranquilidade. Esquentar a cabeça com quê? Principalmente, primo, como você, condição boa, aposentadoria gorda, coisa e tal...
Como é bom de papo, quase não deixa você falar. Continua:
- Principalmente porque você ainda pegou os tempos bons. No seu tempo a coisa ainda valia a pena, ganhava-se bem, comia-se bem, bebia-se bem e tinha respeito e tranquilidade. Antigamente respeitava-se gerente, subgerente.
Dá um a pausa como a dar-se conta de que eu nem era o gerente nem o sub no tempo a que se referia. Olha pra mim e prossegue: - respeitava o funcionário, - chegou no meu posto... - hoje não, falta de respeito total. Não vê esses dias? Dois assaltos seguidos. E um cara aqui na frente do meu bar, naquele poste - aponta-o com o indicador - fuzil dessa grossura na mão, esperando a polícia. De vez em quando um tiro pra cima, pra intimidar. E a polícia apareceu, ela é doida? De 38 na mão? E os outros lá dentro massacrando os funcionários. Isto derruba um homem, primo! Um cara aqui, outro lá no outro poste e eu só olhando pelo buraco da porta. Baixei as portas que eu não sou doido e fiquei com o olho no buraco. Ri.
A esta altura o bar está cheio, um sobrinho atende às outras mesas. Chega um sujeito muito apressado, para pegar dois pacotes de carne que deixara lá bem cedo, até a hora de pegar o carro de volta pro sítio. Como Luizinho continua com a atenção voltada para mim, o cara toma a liberdade de ir ele mesmo pegar os pacotes, na parte de dentro do balcão, terreiro do dono. Nosso terreiro é do lado de cá, né? Vivo, ele percebe o lance e corre atrás do sujeito. Nova demonstração de otimismo:
- Ah, essas carnes aí é, primo? Pelo tempo, já viraram carniça!
Vingança pelo atrevimento do sujeito de invadir seus domínios. O sujeito fala: "virou nada, não deu tempo não!" Mas, por via das dúvidas, cheira ambos os pacotes. "Não disse? Não tem cheiro ruim não". Dá um obrigado apressado e parte para a rua feito bode com medo de chuva. Luizinho recebe um dinheiro do empregado e vai pro caixa guardá-lo. Percebo que está morrendo de rir do aperreio do cara com a história da carniça... Olha para mim e vê que também rio da pegadinha. Dobra a risada e arremata:
- é isso aí, primo, o rojão é grande, se a gente não brinca, endoida! A coisa é difícil, não é fácil não! Vê uma biroscazinha dessas? O sujeito pensa que é fácil, é fácil não! Aparece cada sujeito folgado... Aí a gente dá um nó nele para ele saber que tamos esperto... Senão daí a pouco não mando mais em nada aqui!
Ficamos rindo ainda algum tempo. Mais uma dose, peço a conta, minha irmã já passou me convocando pro almoço. Pago, recebo o troco, faço as despedidas. E escrevo o que vi. 
Taperoá, 14 de janeiro de 2012.