domingo, 13 de maio de 2012

Seriema e Soldado


Esta foi garimpada em Monteiro, na Paraíba. 

Assim como em Patos reinou absoluto seu Manduri; assim como seu Lunga reina ainda no imaginário do sertanejo, tendo encarnado como ninguém o estado de espírito raivoso do homem do sertão nordestino, a ponto de ninguém saber ao certo sua naturalidade, em Monteiro reinou absoluto Caboclo Ferreira. De compleição franzina, alto, tostado de sol, irreverente mas sisudo, homem da lida, envelheceu fazendo história, por conta do mal humor e das respostas ferinas. Como estas, ditas a públicos diferentes, mas num mesmo dia, dia daqueles em que ele já amanhecia abufelado(1). 

Vinha Caboclo para a feira de Monteiro, na carroceria de uma camionete cheia de gente, bichos e mercadorias. Ele, que já amanhecera com o pé esquerdo no lugar do direito, achava-se bastante contrariado com o aperto a que estava submetido."Uma falta de respeito com os velhos" - pensava. Para completar, havia um sujeitinho  metido a engraçado,  descarregado nas redondezas pela Itapemirim(2), direto do Rio de Janeiro, no decorrer da semana. O cara começou a soltar umas lorotas, riram delas, ele pegou gosto e começou a tirar graça  com os companheiros de viagem.  Caboclo Ferreira inchava lá no seu canto. "Este bostinha que não venha pro meu lado!" - matutava(3). 

Para apurar o da feira, Caboclo trazia um couro de cabrito espichado(4). Venderia-o, não depois de uma boa briga, por preço irrisório, àquele safado do comprador de couros de Campina Grande. Cabra ladrão! Comprava tudo de graça, apurava uma bolada nos curtumes de Campina e enricava, o desgraçado, à custa dos pobres dos criadores. 

Metade da viagem já passada, o engraçado acha Caboclo. Olha-o, corre a vista para  a vareta que este trazia com o couro do cabrito e solta: - "Tio, quantos paus se precisa para espichar um couro?". Caboclo dispara: - "Depende, se for de c... basta um!". Silêncio geral até o fim da viagem. 

Parece, contudo, que o Vadio tava de olho em Caboclo Ferreira naquele dia, não o deixaria em paz. Caboclo apurou o couro depois de muita briga, saiu cuspindo fogo, disparou chispa na mercearia, igualmente desentendeu-se com o marchante de gado no açogue, acabou comprando um cozinhado de porco noutra tarimba(5). Saiu com a carne pendurada numa embira(6) pela rua de trás, onde havia menos gente, para não se azucrinar(7) mais com ninguém. Só não contava com a seriema do soldado. 

Seriema hoje é bicho raro. Animal carnívoro, de canto longo e belíssimo. Difícil de domesticar, mas há quem tente, como o soldado desta história, que sentou praça na cadeia de Monteiro.  Dizimaram seu habitat, escassearam os bichos dos quais se alimentava, sumiu seu canto dos nossos ouvidos.  Uns poucos são encontrados em cativeiro.

O soldado tinha fama de bravo, mas derretia-se todo com seu casal de seriemas. Parecia menino com gaiola de passarinho na mão, passeando com as aves, rua acima, rua abaixo. Achando que elas não fugiriam mais pro mato, passou a deixá-las soltas pelas ruas próximas à delegacia. Elas iriam defender-se sozinhas, caçando pequenos animais. 

Para desespero de Caboclo e desgraça de uma delas, mal viu o pedaço de carne que ele trazia, a bichinha principiou a beliscá-lo, tentando roubar um naco. Como disse,  seriema é animal carnívoro, carne na rua é artigo caro e parece que andava pouca na casa do soldado, tamanha era a insistência do animal no pedaço de Caboclo. Era a seriema tentando beliscar a carne, ele afastando-a com uma bengalinha de ferro que já usava naquele tempo, para amparar-se nas subidas e descidas. A paciência dele ia sumindo com aquilo, até que foi pro brejo. Em nova investida do animal,  tascou-lhe o ferro na cabeça, ela caiu ciscando. 

Como mulher metida tem em todo canto, uma que passava na hora gritou: 
- "Seu Zé, cuidado que essa seriema é do soldado!". Caboclo devolve:
- "Seu Zé é a mãe, dona! E pense em duas coisas que eu não tenho medo, é sariema(8) e soldado!"

Glossário:
1. Abufelado: zangado, irritado.
2. Itapemirim: empresa de ônibus que faz ligação do Nordeste com o Sudeste do País.
3. Matutava: pensava, meditava.
4. Espichado: esticado através de varetas de arbustos da região.
5. Tarimba: forma antiga de designar um box de comerciante de carne no açougue.
6. Embira: pequeno pedaço de corda, normalmente de uma fibra regional muito resistente conhecida como caroá.
7. Azucrinar: zangar, tirar a paciência de alguém ou de algum animal. 
8. Sariema: forma comum do nordestino inculto designar seriema. 


Texto e glossário: Ary Diniz, Intermares - Cabedelo/PB
Foto: Internet (Google)

Otimismo em gotas. A sequência


Estando outro dia em Taperoá, fui ao bar de Luizinho com meu irmão Marcos, que estava de férias visitando nossa mãe. Estávamos em papo animado, quando chega à mesa um caboclo com um saco na mão, onde, percebia-se, havia uma faca peixeira grande, com certeza instrumento de trabalho, pois o cara me pareceu da raça dos frouxos como eu. Sem pedir licença, puxou uma cadeira e abancou-se, principiando uma conversa comprida e chata, nem aí para o fato de estar nos atrapalhando. No princípio adotamos a estratégia de não lhe dar atenção, na esperança de ele perceber nossa pouca disposição para ouvi-lo e pousar em outro galho. Mas o cara era insistente, tipo cururu, que a gente tenta expulsar de casa com o cabo da vassoura e ela insiste em voltar. Enxerido, pediu um copo a Luizinho, meteu a mão em nossa cerveja e passou a dividi-la conosco, menos na conta. Marcos e eu trocamos um olhar de entendimento, chamamos o dono do bar e pedimos para ele expulsar o intruso. Cabra jeitoso, Luizinho tirou de letra a tarefa. Aproveitei que ele trouxe nova cerveja, agradeci-lhe o favor e perguntei-lhe, só para ver a reação: 

- Primo, não quer levar o sujeito pro teu sítio? O cara tava aqui nos pedindo emprego. Deve ser bom trabalhador, pois se fosse preguiçoso a essas horas estava era espichado(1) numa rede...   
- O primo tá doido? Um desses aí é a desgraça de qualquer patrão? Não vê Luiz Gonzaga: "trabaiadô quando é bom, segunda-feira num faia"! Que dia é  hoje? Onde ele está? Tá fazendo o quê? 

Luiz trazia à baila frase de uma antiga música do cancioneiro gonzagueano, o Calangro da Lacraia, não sei de quem a letra. Como se vê, essa frase da música ainda é sentença definitiva na boca dos nordestinos mais maduros. Continua Luizinho:
- Cabra de muita conversa, desconfie dele. Num tá vendo, Primo, sujeito desses, saiu de mesa em mesa, bebendo de graça, conversando miolo de pote(2) de caso pensado, pros fregueses se aborrecerem e expulsá-lo da mesa e ele não ter que descolar grana nenhuma. Ora, o cara sai, mas já bebeu um copo ou dois, que era o que queria e mais nada. E assim passa o dia, de bar em bar, de mesa em mesa, no final da tarde tá aí caído pelas calçadas. Conheço bem esses praças(3), tenho muito janeiro de balcão, aqui e no Rio. Sei de tudo, nesse meu pedaço eu sei de tudo, ninguém me passa a perna. Já caí nos papos furados a que tinha direito. Virei macaco velho (4).

É muito divertido tomar cerveja no bar do Primo. Marcos continuou provocando:
- Nada, Primo, hoje em dia tá difícil homem trabalhador, você tem que pegar o que aparecer e esse tá aí dando sopa.
Luiz ri, balança a cabeça e responde:
- Tô fora, fui vacinado contra essas pragas! Mas em seguida esquece o bar e chega ao ponto que eu desejava, ao seu pessimismo antológico. 
- Amigo, nesse cariri velho da gente, ter terra hoje não vale nada e você ainda botar lá dentro essas trepeças(5)? É pra morrer dos bofes. Tome nota: hoje tem dinheiro do governo pra todo mundo, o sujeito engrossa o bigode, vem pra rua tomar cachaça e fumar maconha, tem quem pague, né, vai trabalhar pra quê? A rua(5), entupida de gente de toda espécie. Se a gente bota um comércio, aparece meio mundo de freguês pra comprar fiado e dar calote. Se bota uma roça, vem a formiga que rói a lavoura; se escapa da formiga, na espiga vem o papagaio, faz um estrago da peste; se escapa das maracanãs e chega na fogueira (6), tem que dar um saco pra tudo que é compadre. Sobra o quê? Um nadinha. Se vai vender, o atravessador bota o preço lá em baixo; se põe no silo, aí vem o gorgulho, fura tudo, quando você destampa o depósito só cai farelo, não serve nem pra semente. Não vale a pena. Feijão? É a mesma desgraça: se escapa da formiga, na bage (7) é um cozinhado pro morador, outro pro vizinho, chega no domingo a mulher põe no fogo um bocado, e esse é o que você aproveita. Na arranca(8), vem o frio do meio do ano que não deixa secar; o que escapa dá de cara com a praga do preço, apura-se um nadinha. Se põe no silo, tem que fechar muito bem fechado. Hoje em dia as abelhas sumiram, então em vez da cera, o sujeito usa sabão pra fechar a boca do depósito, o sabão seca, dura pouco, entra o ar, o gorgulho toma de conta. Se bota o veneno, previne o besouro, mas dizem que morre de câncer. Plantar pra quê, meu amigo? 

Tento levar o assunto para outra vertente, só para ver a opinião do distinto.
- É por isso que dizem que no nordeste o certo mesmo é a criação. E nem de gado que exige muito comer, capim, silo trincheira, essas coisas. E Água.
- É outro tropeço, primo. Se você cria o gado, tem que ter água, senão nem comece. Ainda assim, você engorda uma rês, tem que dá ração por um preço de lascar, quando vai apurar o marchante dita quanto quer pagar e se não tiver pelo menos trinta dias de prazo não tem negócio.Teu boi boia(8), você tem que tanger de volta pro curral. Vaca de leite? De 10 litro pra baixo nem tente. Uma vaca de dez litros come igual a uma de vinte, mas a de vinte, vá comprar! Tem que botar milhão pra ter! Ou você morre no banco arriscando não pagar nem os os juros, que estão nas nuvens, aí tem que vender a terra pra pagar ao banco. Negócio ruim, sô! Vai criar bode? Tem que ter cerca, senão acaba em desavença com os vizinhos, porque, ô bicho ladrão é o tal do bode! Tem uns tão velhacos que parece gente ruim: fica o mais taludinho encostado nos arames da cerca, os outros formam fila, correm pro bicho, põe os pés nele e pula os arames. Caem do outro lado dando um bodejo como se fosse mangando(9) da gente, os desgraçados! Pra encurtar a conversa, tem um pedacinho de terra? Faça como eu: pegue se jipe bote dois contos de gasolina, vá lá passe o domingo, tome sua cerveja e volte pra dormir em casa. E deixe a capoeira tomar conta de tudo. E ainda faça fita, hoje não tem o Ibama e os tais de ecologistas dando o maior a valor a mata virgem? Preservar é a coqueluche do momento. E você foge do prejuízo. 

Olho pro meu irmão, ele entende que tá na hora de pagar a conta e ir pra casa. O cara estraga nossos planos de ter uma terrinha, criar umas cabras para quando viermos de férias termos uma diversão diferente. Somos da época do nordeste algodoeiro e pecuário, as cidades eram cheias de casas de agricultores que vinham à cidade no dia da feira e nas festas da padroeira ou no Natal. Tomávamos leite in natura, comíamos queijo de coalho envelhecido nos jiraus das casas das fazendas, comíamos feijão verde e maxixe feito no leite, arroz mexido na graxa do quarto traseiro de bode novo morto no terreiro do sítio, sem selo da Anvisa e que tais. Definitivamente esse Brasil desapareceu. 

Resta-nos então irmos para casa, rirmos do pessimismo de Luizinho tendo-o como se fosse o "otimismo em gotas" da obra do autor famoso. Até a próxima visita ao seu estabelecimento, para prospectarmos mais do que não tem mais jeito neste que um dia foi nosso mundo.   

Texto e foto: Ary Diniz - Intermares - Cabedelo/PB.