quinta-feira, 22 de março de 2012

Geni vive!

Deu no Jornal:  “Um paciente meu sofreu um atentado criminoso por profissionais do sexo (vulgarmente chamadas prostitutas)... ao dar uma carona a pedido delas...” Até aí tudo bem. É sabida a frequência com que, infelizmente, ocorrem golpes de todo tipo nesse meio, sendo o mais comum aquele conhecido como “boa noite cinderela”. O relato da pessoa até sinaliza para uma variante desse, pois diz que o ameaçaram com faca e usaram formol para deixarem-no desacordado. A sequência, entretanto, merece análise mais acurada. Vejamos.

O texto não diz se o fato ocorreu de dia ou de noite, embora depreenda-se ter sido fato noturno. Primeiro, porque, de dia, o local onde o “paciente” da declarante deu a carona não é ponto de prostitutas. Não sei se à noite é. Também o local onde “foi jogado”, a praia do Jacaré, se à noite é esquisito, principalmente neste período de baixa estação, de dia é local de bastante movimento de comércio, difícil, então, de acreditarmos que as agressoras tivessem coragem de largá-lo lá, pra todo mundo ver.

Segue a análise: o que o desditoso cidadão estaria fazendo à noite, na Visconde de Pelotas, com espírito tão samaritano, a ponto de dar carona a três “mundanas” ? O local citado, findo o expediente comercial, quem tem juízo passa ali apenas por necessidade e o mais rápido que o tráfego permitir. Poderia aquele “paciente” estar à procura de aventura? Por que não? Poder-se-ia dizer, para justificação aos amigos e familiares e conforto ao coração do dito cujo, que não fora o primeiro nem será o último a arriscar a pele nesse tipo de empreitada. E que imprevistos acontecem.

Na sequência da leitura, fica claro que a missivista deseja fazer um apelo muito importante às autoridades, em prol da segurança dos cidadãos que eventualmente possam transitar pelo Centro Histórico da Capital, à noite, fazendo o bem. Para isso narra o fato, inegavelmente perigoso para seu “paciente”, mas argumenta, para reforço do pedido que fará, que “os rapazes que precisam de sexo se arriscam da mesma forma, ou mudam de sexo” (grifo nosso).

Já vi, li e ouvi muitas indagações, inquietações e explicações, atestadas ou não pela ciência, acerca da motivação das pessoas para a mudança de sexo. Pois não é que diretamente da nossa pequenina e tão boa Paraíba, vem somar-se a estas, agora, a segurança pública? Melhor dito: a insegurança pública, dos cidadãos e cidadãs desta nossa contemporaneidade tão surpreendente!

Concluída a prévia argumentação, eis a petição: “as autoridades precisam tomar a iniciativa de voltar os cabarés”. Mas não de qualquer jeito, tem que ser “de uma forma legal e segura, como existia antigamente”!. Vale repetir a preocupação da missivista: precisamos urgentemente da volta dos cabarés, mas é preciso ser de forma legal e segura, não adianta fazer a torto e a direito, como vocês fazem tudo neste país, autoridades! Alerta! A Globo diria mais: “estamos de olho!”.

Nossa diligente profissional da saúde (sim, pois se não me falha a memória, apenas nesse meio tratam-se os clientes como “pacientes”, embora, modernamente, já haja quem prefira o termo mais geral do mundo mercantil) está realmente muito empenhada em convencer pessoas do Poder Público a reabrir os cabarés.

Apresentou razões antes do pedido, mas, por via das dúvidas, reforça-as a posteriori, lançando mão de nova linha argumentativa, desta vez lembrando o caráter eminentemente social da “mais antiga profissão”.
Segundo ela  afirma, as autoridades não devem esquecer jamais de que “é a profissional do sexo que define e firma a sexualidade masculina”(grifo nosso). Genial! Geni vive! Chico vive!: “Vai com ele, vai, Geni,.. você pode nos salvar, você vai nos redimir, você dá pra qualquer um, bendita Geni”!...

Entrei em crise existencial. Como pude me esquecer disso?! A quem posso culpar por tão grande lapso de memória? Alguns me dirão, para me consolarem, que foi esse mundo vertiginoso, que nos enfia no tubo do tornado, no olho do furacão, na crista da onda do tsunami, todo dia, a toda hora, a todo instante, sem que possamos controlar nossa existência. Outros me olharão de soslaio, mal escondendo intenções levemente maldosas e dirão, como quem joga a bomba e sai de perto: tás casado a quantos anos com tua mulher? Trinta anos? Mais um pouco, menos um pouco?... 

Devo procurar ajuda, antes que esta crise evolua para dermatites, esofagites, gastrites, depressões, esquizofrenias e/ou outros males. Antes, porém, e para finalizar, trago a lume o último detalhe da diligentíssima missiva: ela escreve às incautas autoridades, à guisa de recomendação para que acordem para tão sério problema, que “as calçadinhas estão impestadas (grifo nosso) desse tipo de profissionais, que ora atacam pessoas que as procuram”  – ih!, não era uma carona? ... – “ pois ficou muito fácil das pessoas criminosas se infiltrarem se passando por tal profissão”.
Geni vive, Chico vive: “... ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni!”.
Intermares, 16.05.2011.
Ari Diniz

sábado, 17 de março de 2012

O PRIMEIRO CAJU

Senti-me o próprio Agnelo Amâncio ressuscitado: achei o primeiro caju desta safra, no sítio de minha sogra.
Agnelo era quem colhia o primeiro caju em Taperoá, safra após safra. Ninguém ainda lembrara de caju e castanha, aparecia o nosso amigo com uma mochila cheia dessa fruta, que casa tão bem com cachaça.

Ele já chegava à cidade entortando as pernas, as mãos, os dedos e a fala, prova de já ter ingerido pelo menos meia garrafa. Tal qual caçador prevenido, que no bornal leva chumbo, pólvora, espoleta e um mercadinho da bendita para prevenir mordida de cobra, Agnelo também saía à cata do caju protegido com seu soro antiofídico. Nada como tomar um trago puxando o caju pro tira-gosto diretamente do galho! Levava o resto do dia para atravessar o circuito de mercearias Isaac-Zé Gomes.

Interessante, Agnelo. Não sei se era o primogênito de João Grande, mas sempre me pareceu sê-lo. Os irmãos, Tiquinho e Paulino, tinham aparência bem mais jovem. Estes possuíam vida econômica ativa, se bem me recordo, fabricando telhas na margem do rio Taperoá, entre este e a estrada velha para Campina.

De Agnelo, só dou notícia de viver em razão de duas grandes paixões: caju e peixe. Nisto atravessava o ano. No primeiro semestre, estação das águas em ano bom de inverno, mudava-se para o rio, tarrafa a tiracolo e jereré na mão, vasculhando os poços que a correnteza abria hoje e fechava amanhã, perseguindo corrós, traíras e piabas. Findavam as chuvas, secava o rio, ficavam os poços maiores. Nos de Pipiu era assíduo.

No segundo semestre, o tempo levantava, sumiam as águas, acabava a abundância dos peixes, migrava Agnelo para os cajueiros. Tinha passe livre nos sítios, todos o conheciam, não reclamavam dele nem pela castanha. Falo de tempos em que as pessoas eram mais solidárias, tudo compartilhavam, a mais-valia ainda não nos envolvera tanto.

E assim tocava Agnelo sua vidinha. Como disse, dedicado integralmente àquelas duas paixões, mas, de fato, alimentando a paixão maior: aguardente de cana, cachaça, pinga, benzedeira, rezadeira, relicário, esquenta-frio, esfria-calor, amansa corno, sossego de velho... Corró e caju só completavam a trindade.

FOTO: internet
Itabaiana, setembro de 2010.

A Agonia do Horto

Não me refiro à agonia d’Ele no Horto das Oliveiras, descrita nos Evangelhos. Quero referir-me  à agonia de outro horto, mais próximo de nós: o horto de Taperoá.

Começou e sessenta e sete do século passado, quando o rio transbordou e o muro que os separava veio abaixo. Depois, foram sumindo as árvores, uma a uma, tendo perdido o pequeno canal de tijolo e argamassa por onde corria a água do Açude do Estado que as regava. Coqueiros imensos lá havia. Vi muitas vezes pessoas subirem para colher cocos, que eram abertos ali mesmo, a canivete, e repartida sua água doce. Recordo-me de uma vez em que Seu Gilberto apanhou um jatobá maduro, que caíra da árvore, abriu-o e deliciou-se com sua massa de gosto único. Aquele imenso jatobá também já não existe, a não ser na lembrança de uns poucos, como eu, que o conheceram.

Descobri ali o gosto do sapoti. Junto com meu primo David, colhemos alguns frutos e os enterramos para amadurecerem. Numa semana, desenterramo-los e os comemos. Nada mais doce! O sapotizeiro, claro, também já era... Naquele horto, tive minha primeira aula prática de botânica. Aliás, foi uma constatação: no livro de leitura da escola, falava da nossa primeira riqueza exportável, cobiça de franceses, holandeses e ingleses, o pau-brasil. Lá conheci essa árvore. Dá até vontade de não dizer, para que alguém não descubra que ele ainda existe e vá lá, de machado ou motosserra na mão, e o ponha abaixo. Não é esse nosso instinto ruim? Mas, sim, ele ainda vive! É o que resta daquele bucólico jardim.

Desapareceu a quadra de areia onde a juventude praticava esporte. É muito nítida minha lembrança de Fernando de Ezequiel, os filhos de Seu Ivanildo, Marcelo Dantas, os filhos de Seu Aprígio e outros, jogando vôlei à tarde naquele areião. Não lembro deles, mas talvez nosso prefeito atual e seus irmãos também tenham jogado lá.

Permanece de pé o muro que dá para a rua que desce da Prefeitura em busca da ponte velha. Mas, o que é um muro, se lhe faltam as pessoas nele sentadas, a prosear à sombra das árvores e ao sopro da brisa da tarde?

Nosso horto não desapareceu à toa. A própria dinâmica da cidade encarregou-se disso. Cidades não são estanques, movimentam-se. Uma área nobre hoje poderá estar em declínio em alguns anos. Em Taperoá aconteceu isso. A construção do atual mercado público, mais ou menos na mesma época da cheia do rio a que me referi, deslocou para a zona leste o grosso do movimento comercial. O conjunto de casas populares, erguido pouco tempo depois, levou para a mesma região um grande contingente de famílias. A Rua Grande e a Chã da Bala perderam o burburinho comercial; ficaram essencialmente residenciais, muito quietas. A ponte nova, construída em sequência à rua São José, consolidou a mudança. Retirou de cá o trânsito de mercadorias e, de quebra, o posto fiscal. Por que ficaria ali o posto de Dadá Diniz, a padaria e o armazém de Gilberto? Aos poucos tudo que havia de comércio nas imediações da Prefeitura, deslocou-se pro outro lado. Mudara o próprio centro da cidade.

O que ainda espanta é, nos dias de hoje, quando é “política pública” redescobrir os centros velhos das cidades, ditos “centros históricos”, o nosso continuar esquecido. Toda cidade que se preza tem seu parque, pulmão da urbe. Nós não! O que custaria aos cofres públicos de Taperoá, replantar aquele horto, cujo vazio clama aos céus? Um funcionariozinho só bastaria. De salário mínimo. Dê-se-lhe o encargo de plantar coqueiros, goiabeiras, mangueiras, jatobás (ainda existem?), pinhas, graviolas e cuidar delas. Seria muito caro organizar um pequeno sistema de irrigação por micro-aspersão, hoje tão banais, e alimentá-lo com água do mesmo manancial, o Açude do Estado? Para ali, a água desceria do chafariz por gravidade, como antigamente, não necessitando sequer gastar dinheiro com moto-bomba, energia ou combustível! Ou também já não existe mais água encanada do Açude do Estado naquele chafariz?

Às vezes me pego a imaginar o que sentem pessoas como Seu Gilberto, Seu Menino, Antonio Patativa, Seu Aprígio e outros, vendo lá de cima aquele seu espaço tão desprezado. Suas almas certamente aprovariam uma atitude concreta da nossa Primeira Autoridade, pela sua restauração.

Devolvamos o horto à cidade! Há crianças, adolescentes e jovens que agradeceriam ter ali de volta o areião para seu vôlei. Quanto a mim, digo que, com grata surpresa, descobri há algum tempo um pé de sapoti na chácara de minha sogra, em Itabaiana. Desde então, não se passa uma safra sem que eu colha alguns para meu café-da-manhã. E, acreditem, venho guardando sementes para plantá-las, qualquer dia desses, no mesmo local onde ficava aquele sapotizeiro de onde colhi meu primeiro sapoti. Vocês verão, farei a minha parte!
Intermares, 08 a 10.09.2009